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O adamanti que começou a sentir.

Os primeiros sinais da aurora surgiam e iluminavam a cidade silenciosa, descolorida pela forte nevasca da noite anterior. Tudo estava quieto, nem mesmo qualquer som da natureza soava naquele local; a água congelada não emitia nenhum ruído. 
Para qualquer outro, o silêncio seria perturbador, mas já era de costume para todos, inclusive para um rapaz sentado na sacada na maior de todas as construções do local. Estava coberto de neve, pois tinha passado a noite inteira ali enquanto a tempestade caía. Mesmo com o frio de congelar os ossos, não parecia incomodado; com a cobertura branca, mais parecia uma das estátuas do local. 
Estava imóvel, mas completamente acordado, um atento vigilante ao que acontecia em sua terra. Viu quando a atividade nas casas deu-se início, quando as janelas começaram a ser abertas e os mais ricos partiam para uma caminha matinal por seus suntuosos jardins. O movimento nas ruas também se iniciava, comerciantes e lojistas varriam a neve das entradas de seus estabelecimentos, como de esperado.Todavia, toda aquela cena era automática e desprovida de qualquer emoção, pois assim eram os Adamantis.
Só depois do sol finalmente ultrapassar por inteiro a copa das árvores foi que o rapaz mexeu-se. Levantou-se tirando assim a neve que lhe cobria, passando a mão apenas por seus ombros e cabeça, deu as costas para a paisagem que vigiava tão atentamente há alguns segundos, entrando em seu quarto e livrando-se da blusa e sapatos molhados no trajeto. Sem qualquer pressa, foi ao grande espelho de moldura dourada que tinha em um dos cantos do quarto; fitou-se, os seus olhos dourados, os mesmos de seu pai, avô e antepassados Kawariless encarando-o de volta. Aqueles olhos eram carregados de pesos e responsabilidades, de gerações que lutavam para manter-se no controle da poderosa raça Adamantis. 
Não sabia do quê exatamente, mas sentia falta de alguma coisa ao encarar seu reflexo. Talvez algo que o movesse, algum sinal de que aquele seria um dia diferente.
Mas não, o que via ali era o mesmo adamanti de sempre.
Era João Kawariless, filho do grande governante Pedro Kawariless e herdeiro do trono e do nome Kawariless. Entretanto, seu pai desaparecera misteriosamente quando João tinha apenas 5 anos e, sendo jovem demais para assumir a liderança dos Adamantis, foi temporariamente substituído pelo seu tio e irmão do rei desaparecido, Marcos Kawariless.
 O esperado era que ao completar seus 20 anos, o jovem príncipe assumisse sua posição de direito, porém, mesmo ao atingir a referida idade, seu tio continuava como regente. A população então pôs-se a reclamar e a reivindicar seu verdadeiro líder e o regente Marcos, a fim de acalmá-los, declarou que João seria coroado rei em seu aniversário de 22 anos. Não os satisfez completamente, mas se cedesse aos desejos mínimos dos Adamantis, seria considerado covarde e derrubado logo, logo... E isso na verdade estava longe dos planos do regente. 
Aquele era o dia, então, da coroação de João e também de seu aniversário de 22 anos. Mesmo que fosse um dia esperado, o adamanti não se sentia diferente, não sentia que aquele era um dia especial. 
E talvez, ainda que ele ou qualquer um de sua raça fosse incapaz de perceber isso, o que o jovem esperava fosse alguma emoção. 
Os Adamantis não eram nada mais do que uma poderosa e orgulhosa raça que vivam no norte gelado e não mapeado de Eldarya. Eram os únicos conhecidos na história que podiam manusear e moldar o tão precioso metal adamantium, conhecido por ser praticamente indestrutível. Além disso, o metal também corria em sua forma líquida pelo corpo dos indivíduos e, quando endurecido pelo próprio adamanti, tornaria seu corpo tão indestrutível quanto o material. A quantidade de adamantium em seu sangue determinava sua classe social: quanto mais adamantium, maior posição na sociedade teria, sendo os maiores detentores do metal em suas veias, a família Kawariless e, portanto, considerada a família real. Além disso, a quantidade de adamantium no sangue também interferia nos poderes, na capacidade de "endurecer" alguma parte do corpo; por exemplo, um plebeu comum teria de se esforçar para defender algum membro específico, enquanto para um Kawariless, a defesa viria facilmente quase que por reflexo, em todo o corpo. A raça também acreditava na pureza do sangue e, por isso, a segunda família de maior posição tinha quase uma obrigação de produzir noivas para os príncipes da família real - isso quando não tinham de casar com as próprias primas. Até onde João sabia, sua noiva seria Madalena Stormace, já que seu tio não se preocupara em casar ou ter filhos. 
Outro detalhe que chamava bastante atenção na raça era seu descaso e incapacidade de sentir emoções. Eram extremamente frios e diretos, características que tornavam-se ainda mais fortes com a quantidade de adamantium no sangue, como se o metal endurecesse o próprio coração. Tudo o que prezavam era o poder e a pureza do sangue, sentimentos não eram considerados menos do que empecilhos para alcançá-los. 
João foi desperto de seus devaneios pelas batidas suaves de seu servo na porta de seu quarto. Apenas murmurou um "entre" de costume e outro abriu a porta discretamente, se esforçando para equilibrar uma grande vasilha de água quente. Foi seguido por mais alguns criados que encaminharam-se para o banheiro do príncipe, preparando seu banho. No final, apenas o primeiro a entrar e servo oficial de João ficou, verificando os toques finais a fim de que estivessem a gosto de seu amo. 
O empregado voltou para onde estava seu mestre que agora tocava o próprio rosto, ainda olhando fixamente para seu reflexo. Pareceu hesitar, mas então anunciou que o banho estava pronto, quebrando a imobilidade do nobre que suspirou e tirou o restante de suas roupas, indo em direção ao banheiro. Entrou sem qualquer pressa na banheira, submergindo por completo e demorando bastante para voltar a superfície. Respirou fundo, pondo a cabeça para trás e apoiando-a no mármore, fechando os olhos como se seus pensamentos o cansassem. 
- Senhor...? - demorou um pouco a abrir os olhos; pensara que a voz viera de seus pensamentos, já que seu criado quase nunca falava.
- Sim...? - grunhiu, esperando a resposta do outro. 
- Hoje é o dia de sua coroação... E, bem, seu aniversário. É um grande dia, esperado por todo o reino e imagino que pelo senhor também, então meus... Meus parabéns, meu príncipe - disse, rápido e com uma expressão que João não conseguia identificar. Fora provavelmente a frase mais longa que presenciara o rapaz dizer e não sabia dizer se por isso ou se pela sua curiosa expressão, João foi pego de surpresa e ficou alguns segundos sem ação. Encarou-o por um tempo e percebeu que o servo parecia incomodado com o peso de seu olhar, com a cabeça baixa e os olhos dançando por todo chão. 
- Bem, obrigado - finalmente respondeu o príncipe, fechando os olhos novamente, mas agora refletindo sobre a atitude do outro.
Depois de banhado, esfoliado e perfumado, o nobre saiu do banheiro trajando um fino roupão. O festim em seu nome começaria logo cedo, então teria de vestir-se de acordo: usaria as roupas confeccionadas especialmente para aquele dia, um fino conjunto azul-petróleo, com tendência ao verde, detalhes dourado-acobreados e uma capa mais escura caindo sobre suas costas e um de seus braços. O servo calçava seus sapatos enquanto João selecionava as joias que usaria; optou apenas pelo anel de seu pai, dourado e largo, com uma única pedra negra que, ao ver do príncipe, dava alguns vislumbres azuis-esverdeados na luz do sol. Pôs sua coroa na cabeça, o modelo provisório utilizado por todos os outros príncipes Kawariless, e estava finalmente pronto. 
Ambos, servo e mestre, saíram dos aposentos do nobre e caminharam juntos para a sala onde ceiavam o regente e o príncipe. Marcos já estava a mesa quando João adentrou o local, desfrutando de seu café enquanto observava o funcionamento do reino pelas enormes janelas de vidro. Só percebeu o sobrinho quando esse começou a ser servido pelo movimento de alguns servos e apenas cumprimentou-o com um meneio da cabeça, como em qualquer outro dia. Apesar disso, também vestia-se mais formalmente que o costume, reconhecendo simbolicamente que aquele dia seria diferente. 
Comeram em silêncio, mas podiam ouvir o movimento da população adamanti, que se preparava para o desfile do príncipe. Como João raramente saía dos terrenos nobres, a maior parte da plebe nunca sequer tinha visto-o, então tudo fora organizado para que subisse ao trono só quando todos os adamantis tivessem noção de quem era. 
Ao terminarem suas refeições, ambos levantaram e seguiram pelos corredores, seguidos de seus servos oficiais e alguns soldados. Do lado de fora do castelo, subiram em uma carruagem sem teto que deu partida alguns segundos depois. Ao longe, João pôde ouvir o som de uma trombeta que anunciava a abertura dos portões palacianos e não muito tempo depois, passavam por eles. 
No início do percurso, paisagem seria constituída apenas por mansões e seus belos jardins, naquele momento cheios de nobres e seus servos que esperavam a carruagem do regente e do príncipe. Acenaram para eles e aplaudiram sua passagem, mas os seus atos eram desprovidos de grande comoção, apenas automáticos. João encarou-os, sua expressão agora aparentando um pouco de tédio, o que não passou despercebido por seu tio, que o fitava com uma clara reprovação no olhar. Alguém fora da carruagem pareceu chamar-lhe a atenção, pois se inclinou quase imperceptivelmente para o sobrinho e sussurrou-lhe:
- Ali está sua noiva, Madalena. Cumprimente-a. - João seguiu seu olhar e viu a moça em questão, muito bem vestida e com as mãos obedientemente cruzadas sobre o colo. Cumprindo com sua suposta obrigação, deu-lhe um aceno mínimo e voltou a encarar seu tão respeitável público. 
Depois de um tempo, o príncipe reparou que o estilo das casas estava mudando, substituído agora por construções mais simples e estabelecimentos. Várias pessoas haviam juntado-se para vê-lo, mas em quantidade bem maior que na área nobre. João não soube bem dizer o que era, mas diferentemente do local por que tinham passado, ali tinha algo no ar, uma espécie de vibração, que podia sentir no seu interior. O povo adamanti que o encarava agora não parecia estar ali apenas por respeito, mas também por curiosidade, por algo mais, talvez? 
Não sabia dizer o porquê, mas estava hipnotizado por aquele movimento. 
As cores pareciam mais vivas, tudo ali parecia movido por algo que a nobreza e todo seu dinheiro e sangue puro não tinha. Lhe saudavam e faziam curvaturas, alguns sorriam e faziam barulhos com a boca; o príncipe talvez estivesse tanto assustado quanto admirado.
Se dirigiam agora para a área mais simples da cidade e a comoção estava enorme, porém subitamente o regente dirigiu-se ao cavalariço, murmurando uma ordem que João ouviu com extrema clareza. 
- Aqui já está bom, já podemos voltar - só então o príncipe notou que o tio olhava para a população com certo desdém; sentiu-se imediatamente desagradado com a atitude do mais velho.
- Não, iremos até o fim. Foram sua palavras e não minhas, meu tio, que só retornaríamos quando todo o reino estivesse ciente de quem era seu novo rei - João disse, com uma súbita autoridade que assustou o regente. O próprio condutor parou o veículo, sem saber as ordens de quem seguir. 
- Ora, não seja idiota, João. Não há necessidade que nos locomovamos por eles... Ponha-se no seu lugar, garoto - retrucou o tio num sibilo, reparando que todos os encaravam tentando entender o porquê da carruagem ter parado. João cerrou os punhos, mesmo sem saber o porquê de estar irritado com Marcos. 
- Ponha-se você no seu lugar, tio Marcos... Esqueceu-se que você é apenas o regente e quem sou eu? Eles fazem parte do povo Adamanti e portanto, também têm de reconhecer seu líder. Iremos até o fim. - o mais velho encarou-o, furioso e chocado, pois aquela era a primeira vez que o jovem Kawariless o confrontava. Sem mais dúvidas, o condutor seguiu o caminho adiante, enquanto João voltava a observar seu povo e o tio encarava-o com um olhar no mínimo assassino.
Percorreram até os cantos mais remotos do território e retornaram apenas depois do meio-dia. Começara a nevar novamente, nada muito forte, porém o suficiente para criar uma fina camada branca sobre o veículo. O rapaz estava um pouco cansado, mas parecia satisfeito pela primeira vez em muito tempo. Ao estacionarem no castelo, seu tio desceu sem dizer-lhe qualquer palavra, dirigindo-se rudemente para seus aposentos. João respirou fundo e pulou para fora do veículo, indo para seu quarto sem muita pressa. 
Ao abrir as portas, foi imediatamente livrando-se da capa e dos sapatos, pondo seu anel cuidadosamente sobre a cômoda. Em seguida despiu-se do fino traje e pôs uma calça mais confortável, desabando na cama. Ouviu uma batida em sua porta e, supondo ser seu criado, murmurou um "entre"; deduzira certo. O jovem entrou, perguntando-lhe sobre sua próxima refeição e, como não queria estragar seu humor com os olhares reprovadores do regente, pediu para que o servissem em seu quarto. O servo assentiu e não muito tempo depois retornou com o almoço de seu mestre em um carrinho, arrumando tudo sobre a mesinha vazia próxima a uma das janelas. João, embora procurasse manter a classe, estava faminto e não demorou muito a comer tudo o que o criado trouxera. 
Começou a analisar alguns livros, a fim de escolher um para passar seu tempo até que tivesse de arrumar-se novamente para a coroação, enquanto o outro juntava os pratos da refeição. Todavia, para surpresa do príncipe, o rapaz chamou-lhe a atenção pela segunda vez naquele dia. 
- Pois bem, o que é agora...? - perguntou-lhe o príncipe, sinceramente curioso. 
- É que... Bem, eu soube que o senhor continuou o caminho pelo lado menos importante das terras adamantis... Por quê? - indagou o servo, mas diferentemente de Marcos, com os olhos sem qualquer reprovação.
- Eles são parte do povo que vou governar também, por que eu não iria? - retrucou o nobre, sinceramente confuso. O pebleu, entretanto, arregalou os olhos, piscando claramente surpreso. Deixou escapar o que João não conseguiria reconhecer como a sombra de um sorriso, deu-lhe uma reverência e dirigiu-se à porta com as louças. 
- Será um excelente rei, meu príncipe - disse-lhe antes de sair, deixando o outro absolutamente perplexo. Por fim balançou a cabeça e puxou qualquer livro sem mesmo olhar o título, sentindo que aquela não seria uma leitura produtiva. 
Mais uma vez, deduzira certo: não conseguia se concentrar nas palavras, que pareciam pular para fora das páginas. Desistindo, fechou o livro e deitou-se com um suspiro, olhando a paisagem além da sacada, o movimento do reino que aumentava conforme o sol descia pelo céu e suas cores tornavam-se alaranjadas. Seus pensamentos fugiram para aquele momento da manhã onde confrontara o tio, para a parte de seu povo que não conhecia até pouco tempo e que pareciam bem mais... Receptivos? O príncipe não sabia bem dizer o que aqueles adamantis tinham, mas eram diferentes dos nobres que conhecia e de repente, sentia-se bastante ansioso para vê-los novamente. 
Naquele momento finalmente veio aquilo que tanto esperava: a sensação de que aquele dia era diferente, especial e que mudaria a vida não só dele, mas de todo o seu povo. 
Chamou seu criado antes do horário previsto e pediu para que lhe preparasse outro banho quente, adiantando-se e separando logo suas roupas enquanto o rapaz cumpria com a ordem. Ao retornar, o servo ficou perplexo com a atitude do príncipe: antes tão calmo, jogara sua calça para qualquer canto do quarto e estava com seu roupão de banho, sinalizando para que o outro se apressasse. Com os olhos arregalados, o rapaz apontou o banheiro, indicando que o banho estava pronto e João passou por ele, pela primeira vez tocando seu ombro em forma de agradecimento. 
Dentro da banheira, dedicou-se unicamente a sua higiene, prometendo a si mesmo que relaxaria apenas depois de coroado. 
Saindo do banho, mais uma vez surpreendendo o servo ao dispensar qualquer ajuda para vestir-se. O traje que separara tinha sido escolhido há muito tempo: era o mesmo que seu pai usara em sua coroação, um elegante conjunto abotoado azul-marinho, quase preto, com detalhes mínimos dourados e uma capa de mesma cor com o brasão Kawariless bordado nas costas, além da belíssima espada de adamantium em seu cinto, também herdada do último rei. Devido sua empolgação, atrapalhou-se um pouco com os botões, então o servo, não conseguindo conter um sorriso de divertimento, aproximou-se e com extrema delicadeza e assumiu sua tarefa. O nobre ficou-o encarando, curioso sobre o que se passava na cabeça do outro que, ao levantar o olhar, ficou intensamento ruborizado e afastou-se em silêncio. João então resolveu aproximar-se e tocar-lhe umas das bochechas que haviam mudado de tom.
- Está tudo bem? Seu rosto mudou de cor... isso é normal entre os plebeus? - perguntou-lhe, com a testa franzida. Já o servo que antes estava apenas ruborizado parecia que agora iria explodir, olhando para o mestre com os olhos esbugalhados. Conseguiu fazer que sim com a cabeça e escapar do toque do príncipe, ainda que em absoluto choque. Sem entender nada do que tinha acontecido, o jovem Kawariless foi até sua cômoda, onde tinha deixado o anel herdado por seu pai e o pôs novamente no dedo; logicamente não usaria nada na cabeça, já que estava indo para sua própria coroação, mas ainda assim seria uma sensação estranha apresentar-se em público com a cabeça desnuda. 
Estava concentrado com os últimos detalhes quando alguém bateu em sua porta. Tendo recebido autorização de João, o servo abriu a porta e quem estava ali não era ninguém mais ninguém menos que o regente, segurando duas taças nas mãos. Imediatamente o príncipe estranhou a presença do mais velho: seu tio nunca fora procurá-lo pessoalmente em seu quarto, ainda mais furioso como deveria estar com o sobrinho. Entretanto, tinha nos lábios a sombra de um sorriso, mas diferentemente dos que vira em outras pessoas, a expressão no tio não o agradara nem um pouco. 
- Boa noite, João... Vim aqui lhe propor um último brinde, enquanto ainda sou o regente e você o príncipe, em nome de seus 22 anos completos e de sua coroação - disse, fechando a porta com um dos pés e entregando uma taça para o outro Kawariless. Tanto o príncipe quanto o seu servo ficaram perplexos com o ato do regente, mas João apenas deu de ombros e ergueu a taça, não percebendo o olhar de alerta do outro jovem no quarto. 
- Ao seu sucesso, meu sobrinho - disse o mais velho, repetindo o gesto e tocando sua taça na do outro Kawariless. Juntos, beberam a misteriosa bebida que o tio lhe trouxera.
Se João tivesse reparado melhor na expressão vitoriosa do tio, ou no olhar de extrema alerta de seu servo, não teria bebido o que lhe fora servido. Todavia, estava empolgado com a expectativa de ser coroado, do que viria pela frente e não desconfiaria logo de seu parente. A ingenuidade do rapaz seria sua derrota: mal terminara o conteúdo da taça e sua cabeça latejou intensamente. Deixou escapar um grunhido, agarrando seus cabelos como se pudesse arrancar a dor. Ouviu seu servo gritar por ele e então perdeu a consciência. 
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Não fazia a menor ideia de onde estava; tudo era escuro e silencioso. Sem conseguir ver nada, tentou mover-se, tocar em alguma coisa, mas percebeu que também não sentia nada, nem mesmo seu corpo. Então lhe veio uma pontada violenta e pôde ouvir sua própria voz num choramingo de dor. Notou que podia sentir novamente, seu corpo e a superfície fria e dura onde estava deitado. Finalmente depois de muito esforço, conseguiu abrir os olhos. 
Estava em um quarto, isso conseguia perceber. Tinha uma enorme cama, um grande espelho emoldurado próximo a uma parede e uma cômoda. Olhando com mais atenção, percebeu um corpo em um dos cantos do ambiente, com a cabeça suja de sangue. Estava morto? Não sabia dizer. Pra falar a verdade, não sabia nem se permaneceria vivo por muito tempo.
 Um par de botas apareceu no seu campo de visão, bem frente a seu rosto. Ouviu uma risada desprovida de emoção e o dono das botas levantou-o pela frente das vestes. 
- Ora, meu caro, não leve pro lado pessoal... Todos sabemos como nossa espécie é difícil de matar. Mas sabe como pode se conseguir isso? Apagando sua identidade, seu conhecimento... Sua memória sobre quem é. Diga-me agora... Quem é você? - murmurou para o rapaz. Quando não obteve resposta, pôs mais força no aperto, sufocando-o.
- E-eu... não s-sei... - disse, sem forças, tomando consciência de que realmente não sabia quem era. 
- Bom... Bom assim. Facilita mais as coisas... Ceús, está com o mesmo olhar patético de seu pai quando foi a vez dele - disse o agressor, com nojo. O mais novo, entretanto, não soube o que responder - bem, eu poderia matá-lo aqui, mas sua defesa, apesar de inconsciente e fraca agora, ainda me atrapalharia e faria uma sujeira danada... Não, façamos o seguinte - e foi arrastando o rapaz pelas vestes, até o banheiro. Ali, sem qualquer cerimônia, jogou-o na banheira de mármore, ainda cheia. 
O jovem sentiu sua cabeça ser brutalmente empurrada para baixo d'água. Depois de alguns instantes, sentiu-se sufocar e desesperou-se, tentando subir para a superfície, mas seu agressor era forte. Bateu as pernas, os braços, empurrou, mas simplesmente não tinha forças.
Então desistiu; esperou o descanso de tudo aquilo chegar, imobilizou seu corpo e fechou os olhos... Por que iria lutar? Não sabia quem ou o que era, só que alguém o queria morto.
Quando a consciência começava a abandoná-lo novamente, sentiu a mão do homem violento ceder em sua cabeça e escorregar para fora da banheira. Por puro reflexo, subiu à superfície, respirando fundo e tossindo muito: estava ali na sua frente o sujeito inconsciente que vira ao acordar. Segurava o que parecia ser uma espada agora suja pelo sangue do agressor que jazia ferido e imóvel no chão. Ao assimilar o que fizera, soltou o objeto com um grito apavorado e correu para o rapaz na banheira, que encarava a cena com uma expressão confusa.
- Meu senhor! O senhor... está bem? Ele... - e olhava de um lado para o outro, quase chorando de tanto medo. 
- Eu... Senhor? Quem... Quem é você...? Ou eu... - murmurou, desconexamente, mas bem acordado. Só então o outro percebeu que o rapaz a sua frente perdera sua memória. 
- Céus... - e desabou no chão, sem conseguir lidar com a informação. Avaliou a cena, o príncipe confuso, o agressor e seu próprio parente mortalmente ferido por suas mãos. Antes que pudesse pensar duas vezes, levantou-se com os punhos cerrados e olhou para o jovem confuso.
- Temos de fugir... Se encontrarem-no aqui, com o corpo do regente e claramente confuso, vão julgá-lo desequilibrado e... Não posso nem imaginar, eu... Temos de ir - e puxou-o pelo braço, determinado. 
O rapaz andou habilmente pelo quarto que tão bem conhecia, puxando algumas roupas e outras necessidades, jogando algumas para seu mestre e pedindo para que trocasse as roupas molhadas. No final de tudo, arrumou uma considerável trouxa e a pôs no chão, frente aos dois. Pôs ainda uma capa simples com capuz nos ombros do maior, cobrindo sua cabeça e rosto. Pensando em um possível confronto, prendeu novamente a espada de seu mestre no cinto do mesmo. Pegou também uma capa para si e pôs a trouxa sobre os ombros, puxando a mão do seu senhor com a sua livre. 
- Por aqui, senhor... - e abriu uma passagem na parede, puxando o outro delicadamente com ele. Desceram vários lances de escada iluminados apenas por tochas, entrecortadas por algumas portas. Finalmente pararam frente a uma e entraram discretamente: estavam no quarto do servo pessoal do príncipe. Ali, o rapaz rapidamente pegou as próprias coisas e arrumou numa trouxa bem menor do que a do outro. Em seguida, puxou dois lenços e amarrou um em sua cabeça e outra na do companheiro de fuga, amarrando em seguida outro sobre seu rosto e um sobre o dele.
- Se perguntarem, somos da limpeza - disse o servo, com seriedade; o outro assentiu mesmo sem entender. 
Saíram do quarto para o corredor, misturando-se ao movimento mínimo de empregados ali. Atravessaram sem grandes problemas a multidão que parecia estar mais concentrada nos preparativos de alguma coisa grande. Não perceberam sequer quando o servo surrupiou alguns alimentos da cozinha e os pôs dentro das trouxas. Não demorou muito e finalmente estavam fora da construção, alcançando os estábulos. Só então o mais alto questionou o menor, sussurrando com consciência de que estavam escondidos apesar da memória perdida. 
- Eu não faço a menor ideia de quem é você, mas você salvou minha vida e acho que está prestes a fazer isso novamente... Você poderia simplesmente ter fugido por onde entramos, então por que...? - perguntou-lhe, sem entender os motivos do outro. 
- Por favor... Eu posso lhe explicar o que quiser depois, mas... Agora não - sussurrou-lhe de volta, sem mostrar o rosto. Sentindo que não conseguiria mais nenhuma resposta, calou-se e seguiu o rapaz furtivamente. 
Não só empregados, mas também alguns guardas estavam ali. Como estavam escondidos próximos a eles, conseguiram ouvir o que diziam sem nenhuma dificuldade.
- Encontrem o príncipe imediatamente... - um superior ordenou aos outros que assentiram. 
O servo empalideceu na hora, mas o companheiro apenas piscou sem ter consciência de que falavam dele. Esperaram os guardas se distanciarem e foram até o estribo onde estava o cavalo do príncipe. Desamarraram suas cordas e o prepararam para a viagem; o animal parecia entender que a operação era feito em segredo, pois ficou em absoluto silêncio e imóvel enquanto punham sua sela. Cobriram-no para que ninguém reconhecesse a montaria e foram andando furtivamente em direção ao portão.
Todavia, para o horror dos fugitivos, o fluxo de pessoas entrando e saindo do palácio estava sendo interrogado por vários guardas. Tentaram seguir pelo meio dos trabalhadores, a cabeça baixa para não chamar atenção. Por algum tempo funcionou até que, pouco antes de ultrapassarem os últimos metros, um guarda chamou a atenção do maior. Fingiram não ter ouvido, mas o superior pôs uma lança em sua frente, pedindo que se identificassem. O olhar que o rapaz dirigiu ao menor foi curto, mas bem claro: fugiriam naquele momento. 
Com a habilidade nata e inconsciente, o jovem pulou sobre as costas do cavalo, estendendo a mão para o servo e puxando-o sem nenhuma dificuldade. Antes mesmo que a segurança pudesse assimilar, os dois fugitivos dispararam a toda velocidade. Não era a toa que o servo escolhera o cavalo do príncipe: era o animal mais veloz do reino. 
Levou algum tempo para que ouvissem os guardas perseguindo-os. O cavalo mostrou seu potencial e ultrapassou a área nobre em um instante, sem nenhuma dificuldade. Depois de algum tempo, estavam na área dos plebeus, onde o servo foi guiando o outro rapaz meio a intensa multidão festiva. Perderam um pouco de sua velocidade porque tomavam cuidado para não pisotear o povo, coisa que não preocupava os guardas. Entretanto, com a velocidade que cavalgaram, o capuz dos dois caiu para trás e o lenço do maior escorregara para seu pescoço. Quando algumas pessoas da multidão repararam em seu rosto, pareceram absolutamente perplexas. Depois, grande maioria pareceu fazer cara feia para os guardas, perguntando o que diabos estariam fazendo e barrando seu caminho. Os fugitivos aproveitaram a deixa e seguiram em frente, ultrapassando a parte mais movimentada do reino e tomando mais velocidade. 
A noção do tempo fora perdida naquele corrida; o senhor não sabia se haviam passado horas, ou minutos, só tinha consciência de que finalmente estavam fora do alcance dos guardas. Permitiu-se parar e deixar escapar uma pequena risadinha de alívio.
- Ei, você foi ótimo - disse ao cavalo, dando-lhe tapinhas na nuca -  conseguimos, certo? Acha que podemos parar pra descansar? Ei, você está bem? - perguntou para o outro, percebendo que ele não dissera nada durante o trajeto. Só então o servo, que segurava firmemente nas vestes de seu senhor, perdeu suas forças e desabou da montaria - EI! - o companheiro assustou-se, pulando do cavalo e amparando o amigo. 
O jovem então percebeu que o lenço na cabeça do rapaz estava bastante sujo de sangue. Lembrou-se da ferida que o outro tinha na cabeça quando o vira inconsciente e xingou-se por ser tão idiota. 
- Por que você não falou antes? Céus, o que eu devo fazer? - perguntou sem saber exatamente para quem, tomado por uma emoção que não saberia descrever. 
- E-está tudo bem... Eu só... - disse o outro, mas gemeu de dor e pôs a mão na cabeça.
- É óbvio que não está bem! - retrucou, jogando as mãos pro alto. Refletindo um pouco, desamarrou o lenço em seu pescoço e amarrou com firmeza na cabeça do companheiro - isso vai segurar o sangue. Agora me diga onde vamos parar para tentar cuidar de você, okay? - e quando o servo levantou a mão para protestar, o maior logo o cortou - não, não contradiga, só aceite que eu não vou deixar você morrer, idiota! 
O ferido piscou, observando perplexo a expressão severa, mas ainda suave de seu mestre. Sorriu e murmurou um "obrigado", pedindo ajuda para subir no cavalo e informando que guiaria o nobre. Este pulou para as costas do animal e puxou o amigo sem nenhum esforço não para suas costas, mas para entre seus braços.
- Você iria cair de novo se eu lhe deixasse ir atrás, então fique quieto e me deixe segurá-lo - mas o outro não havia dito qualquer coisa, num silêncio envergonhado.
Cavalgaram por uma boa distância, sendo interrompidos apenas por breves instruções do servo. A cada vez que o rapaz olhava para o menor, sentia-se mais angustiado: suas condições físicas pareciam piorar, pois suava bastante e já não conseguia disfarçar suas caretas de dor. Depois do que pareceram horas, onde já mal se viam casas meio a tantos campos, o servo indicou uma minúscula residência, quase imperceptível no meio de tanta vegetação em seu redor. Pararam frente a construção e desceram do cavalo, porém mal o servo pôs os pés no chão e teve de ser amparado pelo mestre. Sem pensar duas vezes, o maior colocou-o nos braços e foi levando-o sem nenhuma dificuldade até a porta.
- Senhor, isso não é... - o menor tentou dizer, ruborizado não sabia-se dizer se por vergonha ou apenas por estar mal.
- Só bata na porta, por favor, estou com as mãos ocupadas - brincou, tentando tranquilizá-lo. Em resposta, o outro apenas assentiu e deu algumas batidinhas na porta. Ouviram passos, uma voz feminina murmurar um "já vai!" e logo depois, uma mulher baixinha abriu e piscou várias vezes, tentando absorver a estranha cena frente a sua casa. 
- Olá, mamãe - disse fracamente o ferido, mas com um sorrisinho. 
Assim que entraram, o filho pediu para que pudesse ficar a sós com a mãe, que olhava de um para o outro em choque. Percebendo então o estado de saúde de seu rebento, a mulher imediatamente preocupou-se e pediu para que o senhor o levasse até a cama. Ao questionar a anfitriã sobre o que poderia fazer para ajudar, recebeu instruções do rapaz sobre onde poderia conseguir uma bacia com água e uma toalha. 
Quando o maior saiu, o servo explicou tudo para sua progenitora, que tentava absorver o excesso de chocantes informações que recebia. Finalmente o jovem assunto da conversa retornou e a mulher não sabia bem se o reverenciava ou fingia não saber ainda quem ele era. Juntos, trataram do ferido em silêncio, limpando todo o sangue e enfaixando devidamente sua cabeça. Depois de todos os cuidados, mesmo com os protestos do filho, a senhora deu-lhe uma bebida para descansasse por um tempo. Quando o servo estava num completo estado de estorpor, sua mãe e companheiro foram juntos até a porta.
- Sabe que ele não pode continuar com você, certo? Ele não vai resistir a uma fuga como está agora, mas com a lealdade que tem, o seguiria até a morte... - sussurou a progenitora, com os olhos cheios de lágrimas e um pedido por perdão. O rapaz sentiu algo dentro de si apertar com o peso daquele olhar desesperado, uma emoção que tinha certeza de nunca ter visto. Pôs a mão em seu ombro, tentando tranquilizá-la.
- Não se preocupe... Partirei ainda essa noite - murmurou, com a sombra de um sorriso. A outra beijou-lhe as mãos, como forma de agradecimento e saiu. O jovem voltou para dentro do quarto, sentando-se numa cadeira ao lado da cama de seu amigo. 
Passaram-se alguns minutos, mas pareceram-se horas, enquanto encarava a paisagem além da janela e procurava entender tudo o que vivera naquele dia. Nem do dia inteiro conseguia lembrar: era como se sua antiga vida fosse um imenso borrão e de repente, tomasse nitidez. Tinha certeza que conhecia o homem a sua frente há muito tempo, mas não conseguia lembrar seu nome. Encarou-o, com várias suposições na cabeça, nomes comuns e incomuns. Não sabia se pela força de seu olhar, mas o enfermo acordou e olhou-o de volta, abrindo a boca e tentando expressar alguma força.
- Senhor, por favor, me perdoe, eu... Iremos assim que amanhecer e...
- Qual o seu nome? - perguntou subitamente o nobre, cortando-o.
- Meu... Como? - o outro piscou, confuso com o interesse repentino do amigo.
- Seu nome? Me perdoe, eu realmente não sei e acho que deveria saber - repetiu, com uma expressão de quem pede desculpas.
- Eu... O senhor não sabia, mesmo antes, não se preocupe... Me chamo Mateus - apresentou-se com um sorriso fraco. 
- Bem, é um prazer, Mateus - e deu uma pequena mesura, enquanto o então denominado Mateus ria - infelizmente não sei meu nome para apresentar-me...
- O senhor é... João Kawariless - disse, estremecendo como se o nome tivesse um grande efeito, mas o enfim João não percebeu. 
- Então prazer, me chamo João... E acho que tenho muito que agradecer a você e por ter feito o que fez por mim, Mateus... - mas foi interrompido por um curto riso do outro.
- Sabe... Sempre achei o senhor diferente, apesar de estar em sua posição, com toda a nobreza... Eu sempre acreditei que o senhor nos veria, veria a mim... Que faria a diferença, dentre todas as gerações... Acho que estive certo - e ficou calado, um sorrisinho nos lábios. Só depois de um tempo, João percebeu que dormira. 
- Obrigada, companheiro... Por tudo - aproximou-se e tocou-lhe levemente a testa. Em seguida, saiu do quarto, já pondo novamente sua capa sobre os ombros e apertando o cinto da espada. Silenciosamente, a mãe de Mateus apareceu e entregou-lhe uma pequena trouxa com comida para mais alguns dias.
- Aceite, por favor... Me perdoe por não poder fazer mais por você, meu senhor... E obrigada, pelo meu filho - disse, com uma curta reverência.
- Eu que agradeço e peço desculpas por tudo que o fiz passar... Agora, adeus - e apertou-lhe as mãos, com uma leve mesura, afastando suavemente. Não demorou muito para preparar o cavalo e logo disparava a toda para o mais longe possível das terras adamantis. 
Sentiu um verdadeiro aperto no coração ao seguir viagem sozinho, mas sua dor não seria maior que a de seu companheiro ao acordar. João não conseguiria compreender que Mateus na verdade sempre escondera uma grande paixão e admiração por ele. O que o nobre tinha em seu interior era um enorme sentimento de gratidão e companheirismo ao reconhecer que o rapaz sempre estivera com ele e até mesmo arriscara tudo por ele. Sentia na verdade por sua amizade, mesmo que como um adamanti de alta posição, não soubesse nada sobre ou mesmo devesse sentir qualquer sentimento semelhante. 
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Já perdera a conta de quanto tempo passara como um andante: dias? Meses? Anos? Completamente perdido. Não costumava comer muito, portanto suas provisões duravam por um tempo considerável, então dificilmente tinha de interagir com outras criaturas vivas. Dormia ao rebento e as estrelas eram suas companheiras, além de seu cavalo. 
Enfrentava chuva e vários outros tipos de tempo, mas nunca ficava doente. Dormia pela noite e vagava sem rumo pelo dia, simplesmente não tinha qualquer objetivo para sua vida. 
Cavalgava, dormia, comia, cavalgava.
Sentia-se um verdadeiro fugitivo de si mesmo e perdia lentamente a noção de tudo. 
Até que finalmente, a luz voltou à sua vida.
Estava sentado em uma floresta, em cima de uma árvore, enquanto seu cavalo pastava alegremente embaixo de si. Assistia o entardecer, os tons alaranjados do céu, com longas pinceladas roxas; decidiu que passaria a noite ali. 
Todavia, naquela noite estava com grandes dificuldades para dormir, o que era bastante incomum. Geralmente caminhava ou cavalgava tanto que ao anoitecer simplesmente desmaiava e só acordava com o sol no rosto na manhã seguinte. Tinha feito o mesmo durante todo o dia, mas o sono não lhe vinha por mais que mudasse a posição ou se cobrisse. João decidiu que deixaria seu animal descansar, mas que iria caminhar um pouco pelas redondezas. 
O rapaz descobriu que na verdade, não estava muito distante da orla da floresta: emergiu sobre imensas planícies, que se estendiam para várias direções, inclusive para os muros de uma grande construção ao longe. João parou por alguns segundos, ponderando se iria até o local, até que conseguiu ouvir, talvez ainda mais próximo, o som do mar. Não via o oceano há um bom tempo, então decidiu que aquele era um bom momento; as águas sempre lhe traziam alguma tranquilidade. 
O adamanti foi caminhando em direção ao som, começando a sentir a brisa marítima bater em seu rosto e bagunçar seus cabelos. Após alguns instantes, estava frente a uma escadaria de pedra que dava acesso à praia. Desceu lentamente os degraus, tirando suas botas antes de chegar ao último e escondendo-as por ali mesmo. Ao sentir a areia em seus pés, finalmente deu o que poderia ser a sombra de um sorriso em muito tempo. 
Começou a caminhar em direção à praia até que percebeu-a ali: estava de costas pra ele, sua silhueta definida apenas pela luz da lua. Seu cabelo estava solto, as mechas esvoaçando com movimentos semelhantes às ondas sobre seus pés. Vestia-se de azul, uma blusa simples e curta, com as mangas caídas delicadamente sobre seus braços, além de uma saia longa e leve; as beiradas estavam molhadas, mas isso não parecia incomodá-la. Pelo contrário, tudo naquele ambiente parecia na verdade tranquilizá-la. 
Então, quando João começou a suspeitar se seria mesmo uma criatura viva por sua imobilidade, a moça moveu-se. Iniciara uma dança de puro deleite e só depois de um tempo que o rapaz percebeu que a água praticamente levantava-se e movia-se com ela. Foi aproximando-se, abismado com o controle misterioso da garota sobre o líquido. Sentiu uma súbita vontade de acompanhá-la, de também estar com ela naquela dança, então ao vê-la finalmente bem a sua frente e de olhos fechados, João pôs suas mãos nas costas da moça, envolvendo-a e agora assumindo o controle de seu giro. Como resposta, ela quase deitou-se, os braços esticando-se, incluindo-o também no círculo de água. Voltou a ficar em pé, pondo as mãos sobre os ombros do parceiro de dança, enquanto este levantou-a pela cintura até o alto, trazendo-a de volta e lentamente deitando-a de lado. 
Terminada a dança, a jovem abriu os olhos, piscando surpresa: tinha os olhos curiosamente de cores diferentes, um verde-água e um negro, ambos luminosos. Ao perceber que estava nos braços de um desconhecido, deu um gritinho e recuou, na defensiva. Seu rosto assumiu uma adorável coloração rosada e João lembrou-se de ter visto a cor no rosto de Mateus. Preocupado e por impulso, aproximou-se e tocou-lhe as bochechas.
- Você... Está bem? - perguntou, a voz rouca pelo desuso. Mais uma vez ela afastou-se, ainda mais ruborizada.
- Estou, mas isso... Quem é você? De onde veio e o que está fazendo aqui? - perguntou, franzindo cenho mantendo sua posição de defesa.
- João... Meu nome é João e eu... Não sei de onde vim, nem para onde vou. Sou um andarilho que perdeu a memória... Só sei que não posso voltar de onde comecei - murmurou em resposta, olhando para as próprias mãos e não pela primeira vez tentando lembrar de alguma coisa além de seu passado e sobre quem era. Voltou a olhar para a moça, que o encarava com desconfiança - e você, quem é, de onde veio e o que está fazendo aqui? - perguntou-lhe com casualidade, irrelevando a posição defensiva da outra. 
- Eu... Akise. Você pode me chamar de Akise... Você disse que perdeu a memória?  Como sabe que não pode voltar de onde começou? - retrucou, mas agora voltava a aproximar-se do outro, parecendo curiosa. 
- É um prazer. E bem, pelo que pude perceber, apagaram minha memória para que eu pudesse ser assassinado, então voltar não seria a escolha mais sensata - disse, dando de ombros, mas Akise cobriu a boca com as mãos.
- Céus, que horrível! Me perdoe, mas por que precisariam apagar sua memória para matá-lo? - perguntou com o máximo de sensibilidade que conseguia. 
- Eu tenho uma espécie de... Defesa em minha pele. Ela se torna praticamente indestrutível em situações extremas e talvez eu soubesse controlar isso e fosse um bom guerreiro... Me deixar confuso e perdido talvez fosse a maneira mais fácil de tentar me matar. Meu "assassino" na verdade foi bem inteligente - supôs, desviando o olhar dele para o mar.
Akise pareceu prestes a questioná-lo mais, até que o rapaz subitamente caiu de joelhos na areia. A jovem correu em seu socorro, tentando apoiá-lo apesar de seu peso.
- Ei, o que houve? Você está bem?! 
- Me perdoe, eu... Acho que me descuidei de minha alimentação - e desmaiou.
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Quando abriu os olhos, percebeu que estava numa sala imaculadamente limpa, coisa que não via há tempos. Poucas pessoas circulavam por ali, entre elas uma mulher de orelhas compridas que examinava um equipamento próximo ao rapaz. Ao percebê-lo acordado, aproximou-se  e checou seus reflexos, se afastando para que João pudesse movimentar-se.
- Com calma, não exagere... Você passou um tempo sem comer, certo? Confesso que sofremos um pouco para conseguirmos enfiar uma agulha em você... O mais recomendado seria você comer alguma coisa leve agora, ou não vai se manter por muito tempo - disse-lhe com certa autoridade - a Akise nos contou que você perdeu a memória, mas você não sabe mesmo o que é? - antes que o jovem pudesse respondê-la, a porta foi aberta e Akise entrou timidamente, equilibrando em uma das mãos um prato de caldo.
- Eu trouxe um pouco de caldo nutritivo, pedi ajuda ao Karuto para fazê-lo - e aproximou-se do leito de João, que a observava atentamente - tudo bem se eu der a ele agora, Ewelein? - em resposta, a então Ewelein deu de ombros.
- Tudo bem... Ele é em grande parte responsabilidade sua já que o trouxe, Akise - retrucou, com um sorrisinho brincalhão e afastou-se enquanto a amiga lhe fazia uma careta. A jovem então voltou sua atenção para o rapaz que ainda a encarava quase como se tentasse entendê-la. Ajudou-o a sentar-se, ajustando a posição de alguns travesseiros para que ficasse confortável. 
- Você parece melhor - disse-lhe, sorrindo um tanto aliviada e tocando-lhe a testa - não parece mais febril - e pegou novamente o prato em mãos, entendendo-lhe uma colherada e pedindo para que abrisse a boca. Logo ao experimentar, João não demorou muito para terminar todo o conteúdo do prato. 
- ... Obrigado - disse por fim, enquanto a moça colocava a porcelana vazia sobre o móvel ao lado do leito - mas... onde eu estou? - perguntou, confuso.
- Você está na enfermaria do quartel-general da guarda de Eel e se assim escolher, seu novo lar - informou-lhe.
- "Lar"...? - sua cabeça inclinou-se para o lado, indicando dúvida.
- Uma espécie de... Lugar para voltar - e deu-lhe um caloroso sorriso. A expressão e a resposta da moça trouxeram-lhe sensações antigas, de um  dia em seu passado que não conseguia lembrar. Arregalou os olhos e pôs a mão no peito, assustado com o calor que surgiu ali.
- V-Você está bem? - Akise perguntou-lhe, preocupada. 
- Eu... Estou sim, bem - e pareceu um pouco desconfiado com a moça, como se ela tivesse causado aquela sensação. 
- Que bom... Eu vou deixá-lo pensar se... - e pareceu querer levantar-se, mas João segurou firmemente seu braço.
- Eu vou ficar... Vou sim, mas... Fique - pediu com seriedade, mas os olhos dourados ardendo. Akise sentou-se apenas com a força daquele olhar, num choque mudo. 
Não conversaram muito, mas o adamanti encarou-a o tempo tempo, na tentativa de compreender aquela criatura e o que ela causava nele. Era quase como a sensação que Mateus lhe trazia, mesmo que ainda não conhecesse a mulher. Quando ela pareceu finalmente não aguentar mais o desconforto do olhar do rapaz sobre si, pediu licença e disse que tinha coisas a fazer; João soube respeitar seu espaço e decisão e permitiu-a ir. 
Assim que o Kawariless conseguiu se levantar novamente, Akise levou-o até a líder do local, uma tal de Miiko. Depois de repetir o pouco que sabia sobre si para a kitsune, a mesma desistiu de tirar-lhe informações e ele recebeu dela uma chave de um quarto, sendo designado aos cuidados de Akise. Foi submetido a uma espécie de teste com outro membro da guarda chamado Kero e selecionado para uma guarda; parece que estaria na Obsidiana, a mesma que Akise. Lembrou-se subitamente dos poucos pertences que tinha e que abandonara na floresta, junto a seu cavalo, então pediu para que a moça fosse com ele atrás deles. A jovem disse que provavelmente não estariam mais lá, mas João reforçou que escondera muito bem e seu cavalo não sairia dali sem ele, então foram juntos. Só naquele momento, o rapaz reparou nas criaturas que pareciam seguir Akise, algumas de longe, outras de perto e ainda umas que vinham apenas cumprimentá-la, esfregando suas cabeças em sua mão ou pernas. Reparando o olhar de curiosidade de João, a moça riu.
- Você nunca teve um mascote, certo? - perguntou-lhe, sorrindo. 
- Eu acho que não... O que são mascotes? - retrucou, piscando com curiosidade. 
- Todas essas criaturinhas que interagiram comigo, a maioria são meus mascotes... São como bichinhos de estimação, mas bem... Mais que isso? A maioria tem apenas um mascote, mas eu simplesmente não consigo resistir a nenhuma dessas criaturinhas - disse ela, agarrando a cabeça de uma espécie de cervo branco com manchas douradas e chifres azuis, e tocando a testa na dele - esse é o meu danalasm, Baratheon - apresentou-o. João aproximou-se lentamente e ambos, adamanti e danalasm encararam-se, como se estivessem avaliando-se. Por fim o mascote foi até ele e abaixou a cabeça. Incentivado por Akise, o rapaz estendeu a mão e fez carinho atrás das orelhas da criatura. O encanto do rapaz pelo bichinho foi bastante perceptível em sua expressão.
- Vamos conseguir um mascote para você depois, relaxe - prometeu Akise, com divertimento - mas agora temos que ir garantir seus pertences, certo?
- Ah, tudo bem - respondeu João, desviando a atenção de Baratheon e seguindo seu caminho. Assim que passaram pelos portões do QG, o rapaz assumiu e foi guiando-a até o ponto de onde saíra da floresta. Não precisaram ir muito fundo para encontrar o local onde o cavalo de João pastava. Apesar de tudo o que passara, ainda era um animal muitíssimo majestoso. O rapaz cumprimentou-o, passando a mão pela cabeça do animal.
- Estivemos juntos esse tempo todo, certo? Eu lhe agradeço muito por ter continuado comigo. Agora tenho um lugar para voltar... E acho que agora você está livre para procurar o seu - dito isso, libertou-o da sela. A elementalista assistiu a cena com um silêncio admirado, enquanto o animal o cutucava com o focinho, num claro sinal de agradecimento. Saiu galopando, olhando uma última vez para trás e relinchando para seu companheiro em adeus. João acenou e foi até a moita onde tinha escondido muito bem sua pequena trouxa. 
- Foi uma boa decisão - murmurou a companheira, sorrindo. João fez que sim, calado pela dor do adeus, que já sentira bem mais intensamente quando tivera de partir sem Mateus. 
Voltaram ao quartel-general no mais absoluto silêncio, parando frente ao quarto de João e usando a chave dada a ele por Miiko para abrir a porta. Caminharam pelo ambiente desprovido de qualquer decoração, apenas com uma simples cama e um colchão. O adamanti colocou sua sacola no chão e sentou-se ao lado dela, remexendo nas coisas. Akise não pôde deixar de reparar na quantidade de maanas e moedas que tinha dentro da trouxa, além da espada claramente luxuosa. 
- Espere, se você tinha todo esse dinheiro, porque estava passando fome? - perguntou-lhe, confusa. 
- Eu não sei... Não preciso de muita comida para sobreviver e me descuidei, ou talvez não tenha tido tanto ânimo para continuar... A vida se tornou um pouco monótona - e deu de ombros, como se não se importasse. 
- Não diga isso - ralhou a moça e ajoelhou-se próximo a ele, tocando seu peito - consegue sentir? Seu coração bate, isso é o sinal de que apesar de tudo você está vivo! Você se esforçou bastante e chegou até aqui... É dos nossos agora e nós nos importamos com você... Espero sinceramente que reencontre seu ânimo aqui e, se sentir que não quer continuar, você pode falar com a Ewelein sobre ou ainda, se sentir-se desconfortável com isso, é só falar comigo - disse, muito séria e olhando-o fundo nos olhos. 
Pela segunda vez naquele dia, João sentiu um calor em seu interior e por reflexo, pôs a mão sobre a dela em seu peito, encarando-a e tentando entendê-la mais uma vez. Dessa vez, Akise encarou-o de volta, firme, então permaneceram naquela posição por algum tempo,  até que ela se soltasse delicadamente e se levantasse.
- Acho que você deveria tomar um banho! Venha, eu consigo uma toalha e sabonete para você - disse, mudando subitamente de assunto, enquanto o outro levantava e assentia ainda com bastante seriedade. 
Saíram do quarto e, como prometido, conseguiu o necessário para que o rapaz tomasse um banho, deixando-o na porta dos chuveiros. Como ele entrou sozinho no local, não viu a moça respirando fundo e tentando acalmar seu próprio coração, o rosto tomando uma adorável coloração avermelhada. Murmurou um "céus, ele deveria ter noção do efeito que seu olhar causa!", para ninguém em especial e saiu do local, lembrando-se de que ele não levara para o banheiro nenhuma muda de roupa limpa. Foi até o estúdio na loja de Purriry, pegando uma das roupas que tinham costurado e pagando à purreko pelo tecido. Em seguida, correu de volta para a porta do banheiro, lembrando então que não poderia entrar. Percebendo que Valkyon vinha pronto para um banho, parou-o no caminho.
- Valky, pode levar essas roupas para o João, por favor? - perguntou-lhe de supetão.
- "Valky"? - levantou uma das sobrancelhas, mas não pareceu irritado, talvez divertido - e quem é João, por acaso?
- É um membro novo da guarda, da nossa! Ele está tomando banho, leve pra ele, por favor, eu não posso entrar - pediu, com um biquinho. O maior riu da expressão da outra,  pondo a mão em sua cabeça.
- Tudo bem, me dê aqui - e pegou as vestimentas sob um olhar agradecido da moça. 
Quando Valkyon entrou no local, ouviu a água cair de um dos boxes e aproximou-se, dando algumas batidinhas. João, que estava de olhos fechados e refletindo sobre tudo que acontecera, abriu os olhos, talvez ainda esperando que acordasse de um sonho.
- É João? Sou Valkyon, seu chefe de guarda. Akise mandou eu lhe entregar essas roupas - o adamanti abriu um pouco a porta e espiou pela brecha: o homem ali tinha uma altura próxima a sua, pele morena e cabelos brancos. Os olhos lembravam os seus, mas tinha a impressão de que os dele eram mais luminosos, como chamas, enquanto os seus lembravam o ouro derretido. 
- Obrigado - murmurou, colocando as roupas numa estante alta o bastante para não molhá-la e fechando a porta novamente.
- Seja bem-vindo a guarda! Espero que se adapte aqui... Você é um guerreiro? - perguntou o albino com casualidade, por mais que não fosse acostumado a conversar muito. 
- Obrigado... E sim, luto com uma espada, desde que me entendo por gente... O que não faz tanto tempo -  acrescentou, referindo-se a sua perda de memória. Quando Valkyon perguntou "como assim?", João respondeu-lhe e começaram um longo diálogo, saindo do banheiro como no mínimo conhecidos. 
Parece que tinha demorado bastante no banho, pois quando voltou ao seu quarto, Akise já havia limpado uma boa parte do local. A jovem não reparou nele assim que entrou, então permitiu-se observá-la por um tempo, a distração com que cantarolava e dançava, passando um esfregão pelo quarto. Quando finalmente percebeu o adamanti, soltou o objeto com um gritinho de susto. Prontamente, o adamanti pegou o esfregão no chão e estendeu para ela. 
- Céus, você é muito silencioso! - disse, envergonhada por ter sido pega cantarolando.
- Me perdoe e... Obrigado pelas roupas - só então a moça parou para analisá-lo melhor, agora limpo, os cabelos molhados moldando o rosto, as vestes novas que lhe caíam perfeitamente. A calça era negra e simples, com detalhes dourados em suas laterais, além de uma camisa azul-petróleo de mangas longas e gola alta. As botas cor de café decoradas com dourado complementavam seu look e, o que deveria ser bastante simples, na verdade deixavam o belíssimo e exótico rapaz parecendo um príncipe. 
- Acho que vou acabar usando-o como modelo - brincou a elementalista, analisando-o.
- Como o quê? - João tombou a cabeça de lado, sem entender.
- Esqueça, estou brincando... Ou não... Ei, temos que decorar seu quarto e deixá-lo mais com a sua cara! Você tem uma boa quantidade de maanas e moedas, vamos pôr pra fora da carteira! - disse, rindo e tentando empolgá-lo também. Ao reparar que o adamanti continuava confuso, revirou os olhos e puxou-o pela mão, levando-o até o mercado.
No meio de tanto movimento, Akise não pôde deixar de perceber que o outro parecia bastante confuso entre a multidão, tentando assimilar tudo o que acontecia. A elementalista levou-o até uma loja com móveis e ele escolheu os de sua preferência, com uma clara inclinação por cores neutras. Passaram um bom tempo ali, João sentindo acordar algo bom dentro de si que havia adormecido há um bom tempo. 
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Se passaram poucas semanas em que continuavam com aquele projeto de decoração e os dois sentiam que agora se conheciam melhor. João claramente não entendia os próprios sentimentos e Akise buscava aos poucos ensiná-lo também sobre isso. O adamanti não demorou muito a entender o funcionamento da guarda e a se mostrar um exímio esgrimista. Tinha uma força descomunal proveniente de sua raça, além de uma clara disposição e grandes reflexos. Não demorou muito e conseguiu demonstrar a todos sua defesa corporal de adamanti em batalha, mas ainda tentava entender como usá-la propositalmente. Ficou sendo reconhecido por seus misteriosos poderes e inexpressividade; apesar de todo o conhecimento que tinham, ninguém ali sabia o que era um adamanti, o que não era pra menos, já que a raça era bastante isolada no norte gelado de Eldarya. 
No momento, João e Akise estavam no quiosque central logo após um treino, saboreando um doce gelado que Karuto lhes disponibilizou. Não havia nenhum movimento, mas subitamente passaram por ali Karenn e Alajea, olhando para os dois e dando alguns risinhos. O rapaz encarou-as até que sumissem de vista.
- Por que elas estão sempre juntas? - perguntou, com curiosidade. Akise sorriu; já se acostumara com a curiosidade cômica do maior.
- Porque são amigas e gostam da companhia uma da outra - respondeu, dando de ombros.
- Mas eu sou amigo das outras pessoas da guarda, certo? Eu gosto da companhia do Valkyon, por exemplo e ainda assim não estou com ele o tempo todo - e franziu o cenho.
- Bem, é porque elas são melhoooores amigas - argumentou Akise, gesticulando em exagero.
- Como você e a Lunna? Ou Amaya? - exemplificou o adamanti, lembrando dos amigos mais próximos da menor. 
- Oh, sim! Como eu e a Lunna e Amaya... Eles são como irmãos pra mim - respondeu a moça, com carinho.
- E como Aragan e Cicely? - acrescentou João, sentindo que finalmente entendia, mas Akise começou a rir. 
- Não como eles! Claro, eles são amigos sim, mas... Bem, é diferente, são um lindo casal! - explicou, unindo as mãos com um sorriso sonhador.
- E qual a diferença? - questionou o outro, bastante confuso.
- É que... Bem, o sentimento... É diferente, o amor... - murmurou, e agora parecia bem envergonhada. 
- Amor...? - e tombou a cabeça de lado.
- Sim, amor, João... Existem vários tipos, como o familiar, de pais para filhos, de irmãos, o amor de amizade, que pode ser como o de família, um amor mais de afeto e proteção... E bem, o amor deles, é... Como eu explico... - e mesmo com as bochechas começando a se colorir de vermelho, aproximou-se e olhou-o nos olhos - você sente seu coração acelerar quando a pessoa está perto e fica ansioso, feliz, tudo junto! Sente que poderia mover o mundo por ela e quando não pode tê-la por perto, sente intensamente sua falta... Você quer que ela saiba o tempo inteiro o quanto é especial, que pode contar com você e... e... - acabou perdendo-se na intensidade dourada dos olhos do rapaz, que prestava atenção a cada detalhe de suas palavras - e bem, hum, é isso - pigarreou e afastou-se. 
João Kawariless tocou o próprio peito, numa tentativa de avaliar o que estava sentindo, enquanto a jovem ao seu lado parecia concentrada demais na iguaria gelada. 
- ... Acho que consigo entender - disse o rapaz, dando um de seus raros e adoráveis sorrisos, tomando o doce agora com muita mas animação - ah, lembrei! Karenn perguntou quando nós nos assumiríamos, seja lá o que isso significa - acrescentou, dando de ombros. Akise engasgou, assumindo um tom de vermelho até então não visto. João arregalou os olhos, vendo-a tossir e sem saber o que fazer.
- O que hou-você... AI, o que eu faço? Eu, S-SOCORRO! - e soltou sua sobremesa, gesticulando para a moça, pela primeira vez apavorado. 
- E-Eu... B-Bem... - conseguiu responder, antes que o companheiro gritasse por ajuda novamente. Pegou o rosto dela cuidadosamente entre as mãos, sentindo a temperatura de seu rosto, os olhos com uma clara e intensa preocupação.
Akise engasgou de novo, mais uma vez ele berrou e acabaram levando-a para a enfermaria. Até hoje a engasgada não deu detalhes sobre o acontecimento, mas a causa ficou subentendida para todos os membros do quartel-general. 
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Akise tinha partido novamente em uma missão e não pela primeira vez, Miiko não viu necessidade de mandá-lo junto. Embora isso significasse que agora confiavam nele o bastante para não deixá-lo constantemente sob vista de Akise, não parecia muito satisfeito. Ainda tinha dúvidas que queria tirar, doces que queria cozinhar com ela... Mas a elementalista estava longe e não sabia exatamente quando ela iria retornar. Bufou, reconhecendo o tal sentimento como a frustração que Akise tinha lhe falado. 
Resolveu ir treinar um pouco para distrair-se do sentimento irritante, mas parou quando viu dois indivíduos a sua frente. Reconheceu Aragan e Cicely que parecia trocar algumas palavras e, como sempre faziam, uniram seus lábios. Isso acontecia comumente, mas sempre intrigavam o jovem adamanti. Por que faziam aquilo, apenas entre eles? E não eram os únicos em Eel, sempre via duas pessoas como aquelas, talvez não com a mesma intensidade que Aragan e Cicely, mas ainda assim com aqueles mesmos olhares, de... devoção? Não sabia explicar, então quis perguntar à Akise, mas lembrou-se de que ela não estava ali. 
E então recordou da explicação da moça sobre o sentimento do casal. Percebeu que sua frustração poderia ter sido confundida com ansiedade e o quanto sentia falta da companheira. Também reparou no quanto precisava protegê-la e quanta preocupação ela lhe despertava. Pôs a mão no peito, que doía com sua ausência. 
- ... Eu acho que realmente consigo entender - sussurrou, para ninguém em especial. 
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A protegida da lua retornou depois do que pareceram anos na concepção do adamanti. Correu e abraçou-o quando o viu, rindo, enquanto o rapaz devolvia a demonstração de afeito, atrapalhado, mas muito feliz. 
- Preciso falar com você - disse, com uma seriedade e urgência que assustou a moça; João sempre estava calmo e dificilmente demonstrava ansiedade, ou ainda mais, urgência. 
- Está tudo bem? Aconteceu alguma coisa? - perguntou preocupada, enquanto ele a afastava do movimento e a levava em direção ao jardim da música. 
- Sim, estou bem e aconteceu - e só então virou-se para ela, com um sorriso mínimo, mas orgulhoso - entendi o que você quis dizer com o "amor" de Cicely e Aragan - declarou, com as mãos na cintura. Akise piscou, absorvendo a informação, até que acabou gargalhando - por que está rindo? - perguntou o maior, franzindo o cenho. 
- Eu... Não, me perdoe... E-eu... Muito bem, que bom, mas como assim? - retrucou a elementalista, embora ainda buscasse conter um sorriso. 
- Eu... "senti"..! Enquanto você estava fora, muuuuita falta e doeu aqui - tocou o próprio peito - e eu fico muito feliz quando estou com você e não frustrado, mas ansi--ansioso para lhe ver novamente quando está longe... Além do que, eu quero muito lhe proteger e que você saiba que é... Importante. Para mim - disse aquilo tudo como se estivesse listando e gesticulando o tempo todo, os olhos arregalados - e consegue sentir? - puxou a mão da outra para o seu peito, pressionando-a para que realmente o sentisse - está mais rápido! Você não me disse que isso acontecia?
A voz entretanto não lhe veio: a jovem que parecia sempre ter uma resposta pronta pra tudo abria e fechava a boca como um peixe, sem conseguir olhá-lo nos olhos. Toda vez que levantava a cabeça para tentá-lo, parecia ficar ainda mais vermelha. João entretanto começava a se acostumar com os tons de rosa em suas bochechas, então apenas tocou-as e fez com que levantasse o rosto. Aproximou-se e murmurou um "posso?" com a face a apenas alguns centímetros da sua. Akise não conseguiu formular uma resposta, mas não parecia inclinada a negar, então João fez o que admirava há tempos e desejava tanto fazer: tocou os lábios suavemente nos dela. Inicialmente, movimentou-se com timidez, mas quando sentiu as mãos delas subirem para a nuca, assumiu sua paixão e segurou-a contra si, intensificando o beijo. Continuaram até perder o fôlego e afastarem-se arfantes, João com o sorriso mais brilhante de toda a sua vida. 
- Acho que você sente também, afinal você descreveu muito bem - disse, enquanto a moça, apesar de envergonhada começava a rir. 
Conversaram ainda por muito tempo, sobre tudo o que acontecera enquanto estiveram separados, sobre as dúvidas do maior e sobre o novo sentimento esclarescido, voltando para dentro da construção apenas quando as estrelas começaram a surgir. 
Naquela noite pela primeira vez, Akise permitiu-se beber álcool com ele ali e só então o adamanti viu sua situação bêbada e cômica. Divertiu-se e dançou com ela sobre as mesas, dando talvez suas primeiras gargalhadas em sua vida. Tinha certeza de que com ela, nunca perderia o ânimo de sua vida. 
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Não tardou muito para o QG descobrir a união dos dois: quando Akise decidiu dar-lhe um Minaloo de presente, sendo que o rapaz claramente sonhava em ter um mascote desde que chegara, ficou tão feliz que beijou-a na frente de todos. A maioria reagiu com assobios e aplausos, dizendo "já não era hora!", deixando a moça encabulada, mas bastante feliz, assim como o adamanti. 
Quando seu ovo eclodiu, o filhotinho correu direto para seus braços e balançou o rabo, feliz. Decidiu chamá-lo de Mateus, em homenagem ao amigo que arriscara a vida para ajudá-lo. Aquela altura, já tinha relatado para Akise toda a sua fuga, então ela sorriu com a escolha do parceiro, em admiração e aprovação.
João todo dia aprende uma coisa nova e se torna cada vez mais sociável. Diga-se de passagem que foi um grande constrangimento quando o rapaz começou a ter dúvidas sexuais; teve o bom senso de fazer esse tipo de perguntas antes de tudo com os amigos. Como sua parceira chegara ali com nenhum conhecimento, tendo sido a vida toda instruída para se tornar uma sarcedotisa, acabou tendo de seguir os conselhos das amigas e de livros de romance. Não demoraram muito para assumirem seus desejos e partirem para a prática; a partir daí, não precisaram mais de instruções. 
O príncipe adamanti alcançou uma estabilidade em sua vida, um lugar para voltar, alguém a quem proteger e amar. Mesmo que tivesse agora alguns vislumbres do que já tinha vivido antes de perder sua memória, não tinha a menor das dúvidas.
Era ali que tinha de estar. 

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